“Pureza é algo difícil de se encontrar hoje no mundo, nos seus mais
variados sentidos, principalmente nos mais literais.”
Milagroso
foi o dia em que pude, por um gratificante instante, desfrutar de um silêncio
que, há tempo, não se manifestava. Nenhum veículo transtornava os ouvidos
daqueles que tiveram a breve graça de caminhar pelas calçadas da Estrada dos
Bandeirantes, naquela manhã de plena semana de rotinas profissionais, cada vez
mais corridas e exigentes.
O
intrigante é que um momento como este, que deveria ser uma espécie de especial
agrado, serviu-me, contudo, de alerta. Estamos tão acostumados a essa vida
subordinada ao caráter capitalista que tampouco reparamos aonde chegamos.
Diariamente, acordamos com um peso enorme das mais variadas condições humanas.
Acordamos mal-humorados, porque temos ciência do estressante e exaustivo dia
que mais uma vez teremos de enfrentar; acordamos cansados, porque a rotina foi
tão cruel conosco que tivemos de abusar das horas, forçando um “descanso”
mental diante da televisão, que nos privou de acostarmo-nos mais cedo à cama;
acordamos arrependidos, porque não fomos capazes de realizar o que planejamos;
acordamos desesperançados, porque, por mais que nos esforcemos, novamente
sofreremos tudo aquilo que queríamos evitar ou que, pelo menos, fosse menos
avassalador, fosse diferente.
O
mais inquietante é que pouco somos afetados por isso, pois já sofremos tanto
que até ousamos nos acostumar. Não precisamos ir longe para enxergar a
conturbação do mundo. Baseando-se no primeiro relato, todos os dias, vemos
milhares de carros buzinando; ouvimos estalos das pesadas rodas dos caminhões
sobre o asfalto; o som de milhões de motores já é considerado silêncio, porque
é tão frequente que até parece natural; veículos que avançam os semáforos;
pedestres que não têm tempo nem de alcançar a faixa de travessia; o caminhar
apressado das pessoas, passando uma pelas outras como se fossem fantasmas, sem
ao menos desejar um bom dia e, muito menos ainda, desviar o olhar do caminho
para dirigi-lo àqueles que presenciam o seu redor. Este é o rumo do
desenvolvimento da humanidade?
Não
desprezo o desenvolvimento humano, em todos os seus ramos (filosofia, razão,
pensamento, ciência, engenharia...), pelo contrário, valorizo e me admira
muito, até me incentiva. No entanto, a questão aqui a qual quero ressaltar é
que esse desenvolvimento, sendo administrado por um individualismo crescente,
nos dirigiu a um ponto tão culminante, onde, cada vez mais, as coisas mais
essenciais em nós (isto é, a pureza das virtudes humanas) estão sendo
mascaradas por essa conturbação. Conturbação, agora, não mais a que se passa no
mundo, porém, a que se passa no espírito, relembrando, também, todo o
sofrimento que se inicia só no momento do despertar da manhã, sem levar em
conta todos os outros que ainda serão enfrentados ao prolongar do dia.
Será
que não esquecemos aquilo que nos é mais essencial?
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